Quem examina a historiografia brasileira oitocentista reconhece-lhe logo certa imbricação com a literatura. De fato, inicialmente subordinada como gênero literário, ela viu o seu nascimento coincidir com o processo de autonomização crescente de seus pressupostos e de sua poética. Assim, é na medida em que se constitui como discurso peculiar, que a historiografia produz a sua própria gênese moderna. (PUNTONI, 2003, p. 634)
O Indianismo, com sua idealização, valorização e invenção do índio, esteve presente em obras produzidas desde o Brasil Colônia. Autores do Arcadismo, no século XVIII, como Basílio da Gama, que publicou em Lisboa Uraguai (1769) e Santa Rita Durão, com Caramuru (1781), já traziam à tona essas imagens sobre os índios. Contudo, “o Arcadismo realizou a representação do índio palatável ao gosto ocidental [...]. Descobria-se que a imagem domesticada substituía com vantagens a incômoda realidade étnica brasileira, selvagem e plural.” (AMOROSO; SÀEZ, 1998, p. 239).
No século XIX, o Romantismo era um modelo predominante nos discursos do IHGB acerca da temática indígena. À imagem do nobre selvagem, seguia a política indigenista do Império, com o projeto de conduzir os índios, via catequese, ao ingresso gradual na sociedade nacional. Dessa forma, a literatura foi utilizada como instrumento de valorização do país, com um intuito patriótico, contribuindo, assim, para o engrandecimento da nação. Um dos exemplos desse pensamento está presente na poesia indianista de Gonçalves Dias (1823-1864), que se bacharelou em Direito em Coimbra e, no Brasil, dedicou-se ao jornalismo, também foi professor. Dias escreveu o poema O Índio, quando fazia o curso de Direito em Portugal. No Romantismo, sofreu influência de autores portugueses como Alexandre Herculano. Ao chegar ao Brasil, em 1846, foi nomeado para compor o IHGB.
Em 1852, escreveu Brasil e Oceania, em que o autor buscava:
a comparação dos caracteres físicos, morais e intelectuais dos indígenas destas duas porções do mundo, considerados no tempo da descoberta, para deduzir desta comparação qual deles oferecia mais probabilidade à civilização. (DIAS apud AMOROSO; SAÈZ, 1998, p. 237)
Em 1854, viajou à Europa, em uma comissão da Secretaria de Negócios Estrangeiros, onde trabalhava. Também viajou ao Ceará e Amazonas, em 1859, como chefe de uma sessão para estudos etnográficos. Foi o primeiro poeta do Romantismo brasileiro a discutir a cultura indígena. Gonçalves Dias consolidou o Romantismo, incorporando à nossa literatura temas e formas que serviram de modelo para as gerações posteriores. A sua poesia indianista expressou um ideal de homem brasileiro, um herói brasílico, representado por um índio mítico e lendário, inspirado no bom selvagem de Rousseau e associado a sentimentos de patriotismo que faziam desse índio um legítimo representante dessa nacionalidade. O Romantismo trouxe à tona a imagem do índio como extensão da natureza, pela harmonia das formas, inocência dos atos e bravura na defesa da terra.
Gonçalves de Magalhães (1811-1882) foi outro expoente desse pensamento. Nasceu no Rio de Janeiro, era médico de formação, foi diplomata e viveu quatro anos na Europa. Nesse contexto, entrou em contato, na França, com os escritos de Ferdinand Denis, que tinha como projeto literário o indianismo, temática que o impressionou desde a sua viagem ao Brasil, em 1816. Contudo, Magalhães, que também era membro do IHGB, e escreveu A Confederação dos Tamoios (1856), entre outras obras, passou a utilizar como discurso legitimador da brasilidade a temática indígena.
Essa especificidade da nação construída na figura do índio também esteve presente nos textos de José de Alencar (1829-1877), que se formou em Direito mas dedicou-se ao jornalismo e à literatura. Nos seus escritos, os índios receberam tons míticos e lendários, a bondade, valentia e pureza eram marcas características desses povos. Os adjetivos serviam para qualificar essa personalidade que identificaria a nova nação. Essa figura foi fundida a partir do herói português, a exemplo de Peri, personagem de Alencar em O Guarani (1857). Peri “é o protótipo do ‘bom selvagem’, mas, ao mesmo tempo é um barão português. Tem heroísmo, nobreza, inteligência, beleza” (FIORIN, 2000, p. 39). Dentre suas obras, também destacamos Iracema (1865) e Ubirajara (1874).
Nas obras dos autores desse gênero literário, percebemos tanto o discurso historiográfico dessa época quanto a imaginação literária, ambos com o intuito de enaltecer a nova nação. Esse projeto centralizador, idealizado por Martius, ganhou força no indianismo romântico:
[...] o indianismo, funcionava, em parte, como um mecanismo de compensação para a auto-imagem da elite que se tinha por européia. O indígena (assim: abstrato e genérico) era preenchido com caracteres, traços, que mais os aproximavam dos ideais nobilitantes de nossa elite do que da crua descrição etnográfica dos povos indígenas (diversos, heterogêneos). (PUNTONI, 2003, P. 637)
No indianismo, o índio foi revestido de herói, os românticos preocuparam-se em “[...] equipará-lo qualitativamente ao conquistador, realçando ou inventando aspectos do seu comportamento que pudessem fazê-lo ombrear com este, no cavalheirismo, na generosidade, na poesia” (CÂNDIDO, 2000, p. 19), pois havia o intuito de se criar umpassado glorioso para o Brasil. Assim, o índio foi equiparado a um cavaleiro medieval, nobre e guerreiro:
A altivez, o culto da vindita, a destreza bélica, a generosidade, encontravam alguma ressonância nos costumes aborígines, como os descreveram cronistas nem sempre capazes de observar fora dos padrões europeus e, sobretudo, como os quiseram deliberadamente ver escritores animados do desejo patriótico de chancelar a independência política do país com o brilho de uma grandeza heróica especificamente brasileira. Deste modo, o indianismo serviu não apenas como passado mítico e lendário, mas como passado histórico. (CÂNDIDO, 2000, p. 20)
Ainda no século XIX, uma outra interpretação indianista surgiu com as idéias de Capistrano de Abreu (1853-1927). Natural de Maranguape (CE), fez seus primeiros estudos em Fortaleza, posteriormente dirigiu-se ao Rio de Janeiro, onde foi professor do Colégio Pedro II e funcionário da Biblioteca Nacional. Capistrano opunha-se ao discurso assimilacionista do Império e buscava as explicações sobre a índole de um povo. Capistrano de Abreu qualificava o povo brasileiro como um mestiço de branco e índio, diferenciando-se de Varnhagen, que defendia um Brasil português e branco. Na sua obra Capítulos de História Colonial (1907), o seu principal personagem era o povo, e os índios ganharam destaque na formação do Brasil, ao serem descritos em seus hábitos, línguas, costumes. Enfim, a sua visão partia dos nativos, da terra brasileira, e não o contrário. Nesse período, século XIX, discutiam-se as teorias raciais, o determinismo, o evolucionismo e o positivismo e, nesse contexto, Capistrano de Abreu inovou na sua interpretação sobre o Brasil, ao incluir, em suas discussões, o social e o cultural, ao contrário da forma de fazer história praticamente política e administrativa, como era comum à época (REIS, 1999).
Contudo, o Indianismo, no século XIX, elegeu o índio como símbolo da identidade nacional: o homem natural, o bom selvagem, de Rousseau, foi retomado pela literatura com o intuito de se forjar um novo herói para a nova nação que se edificava. Criou-se a imagem do índio nobre, um guerreiro de sentimentos puros e grandiosos, uma referência a ser seguida. Todo esse imaginário prevaleceu no ideário republicano que se alicerçou no indianismo para modelar essas sociedades. O índio foi resgatado para ser retratado como um símbolo, construído de forma imponente, como um cavaleiro medieval, cheio de qualidades, virtudes e valores europeus.
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